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III - SOBRE O MECANISMO DA PARANÓIA

(1) A primeira fase consiste na fixação, que é a precursora e condição necessária de toda repressão. A fixação pode ser descrita da seguinte maneira: determinado instinto ou componente instintual deixa de acompanhar os demais ao longo do caminho normal previsto de desenvolvimento, e, em conseqüência desta inibição em seu desenvolvimento, é deixado para trás, num estádio mais infantil. A corrente libidinal em apreço comporta-se então, em relação a estruturas psicológicas posteriores, como se pertencesse ao sistema do inconsciente, como reprimida. Já demonstramos [ver em [1]] que essas fixações instintuais constituem a base para a disposição à enfermidade subseqüente, e podemos agora acrescentar que elas constituem, acima de tudo, a base para a determinação do resultado da terceira fase da repressão.

(2) A segunda fase da repressão é a da repressão propriamente dita fase à qual foi dada, até aqui, a máxima atenção. Provém dos sistemas mais altamente desenvolvidos do ego sistemas capazes de serem conscientes e pode, na realidade, ser descrita como um processo de pós-pressão. Aparenta ser um processo essencialmente ativo, ao passo que a fixação parece de fato constituir um retardamento passivo. Podem sofrer repressão que os derivados psíquicos dos instintos retardados originais, quando estes se reforçam e entram assim em conflito com o ego (ou instintos egossintônicos), quer tendências psíquicas que, por outras razões, despertaram uma forte aversão. Mas esta aversão, em si própria, não conduziria à repressão, a menos que alguma vinculação tenha sido estabelecida e entre as tendências indesejáveis que têm de ser reprimidas e aquelas que já o foram. Onde isso acontece, a repulsa exercida pelo sistema consciente e a atração exercida pelo inconsciente tendem na mesma direção, no sentido de ocasionar a repressão. As duas possibilidades que são aqui isoladamente tratadas podem, talvez, ser menos nitidamente diferençadas na prática, e a distinção entre elas pode depender simplesmente do maior ou menor grau em que os instintos primariamente reprimidos contribuem para o resultado.

(3) A terceira fase, e a mais importante no que se refere aos fenômenos patológicos, é a do fracasso da repressão, da irrupção, do retorno do reprimido. Esta irrupção toma seu impulso do ponto de fixação, e implica uma regressão do desenvolvimento libidinal a esse ponto.

Já aludimos [Ver a partir de [1].] à multiplicidade dos pontos possíveis de fixação; existem na realidade, tantos quantos são os estádios no desenvolvimento da libido. Devemos estar preparados para encontrar uma multiplicidade semelhante de mecanismos da repressão propriamente dita e de mecanismos de irrupção (ou de formação de sintomas), e já podemos começar a suspeitar que não será possível remontar todas essas multiplicidades somente à história desenvolvimental da libido.

É fácil perceber que esse exame está começando a invadir o problema da escolha da neurose, que, contudo, não pode ser abordado até que um trabalho preliminar de outro tipo tenha sido realizado. Mantenhamos em mente, por enquanto, que já tratamos da fixação, e que adiamos o assunto da formação de sintomas; e restrinjamo-nos à questão de saber se a análise do caso de Schreber lança alguma luz sobre o mecanismo da repressão propriamente dita que predomina na paranóia.

No clímax de sua moléstia, sob a influência de visões que eram parcialmente de caráter terrificante, mas em parte, também, de grandeza indescritível (73), Schreber convenceu-se da iminência de uma grande catástrofe, do fim do mundo. Vozes disseram-lhe que o trabalho dos 14.000 anos passados viera agora a dar em nada, e que o período de vida concedido à Terra era apenas 212 anos mais (71); durante a última parte de sua estada na clínica de Flechsig, acreditou que esse período já havia passado. Ele próprio era o único homem real deixado vivo e as poucas formas humanas que ainda via o médico, os assistentes, os outros pacientes explicava-as como miraculadas, homens apressadamente improvisados. Ocasionalmente, a corrente inversa de sentimento também aparecia: foi colocado em suas mãos um jornal no qual havia um comunicado de sua própria morte (81); ele próprio existia sob forma secundária, inferior, e sob esta forma secundária, certo dia tranqüilamente faleceu (73). Mas a forma de seu delírio, em que seu ego era mantido e o mundo sacrificado, mostrou ser, de longe, a mais poderosa. Ele tinha várias teorias sobre a causa da catástrofe. Certa ocasião, teve em mente um processo de glaciação devido a retirada do Sol; em outra, seria a destruição por um terremoto, ocorrência na qual ele, com sua capacidade de vidente de espíritos, deveria representar papel dominante, tal como se alega que outro vidente desempenhou no terremoto de Lisboa de 1755. (91.) Ou, então, Flechsig era o culpado, visto que através de suas artes mágicas semeara o medo e o terror entre os homens, destruíra os fundamentos da religião e disseminara distúrbios nervosos gerais e imoralidades, de modo que pestilências devastadoras se haviam abatido sobre a humanidade. (91.) Em qualquer caso, o fim do mundo era a conseqüência do conflito que irrompera entre ele Flechsig ou, de acordo com a etiologia adotada na segunda fase de seu delírio, do vínculo indissolúvel que se formara entre ele e Deus; era, na realidade, o resultado inevitável de sua doença. Anos após, quando o Dr. Schreber retornou à sociedade humana, e não podia encontrar os livros, nas partituras musicais ou nos outros artigos de uso cotidiano que lhe caíam mais uma vez nas mãos traço algum que corroborasse sua teoria de que tinha havido um hiato de imensa duração na história da humanidade, ele admitiu que sua opinião não era mais sustentável: Não posso mais evitar reconhecer que, considerado externamente, tudo está como costumava ser. Se, todavia, não pode ter havido uma profunda mudança interna é uma questão a que retornarei mais tarde. (84-5.) Ele não se podia permitir duvidar que, durante sua moléstia, o mundo havia chegado ao fim e que, apesar de tudo, aquele que agora via diante de si era um mundo diferente.

Uma catástrofe mundial deste tipo não é infreqüente durante o estádio agitado em outros casos de paranóia. Se nos basearmos em nossa teoria da catexia libidinal, e seguirmos a sugestão dada pela visão que Schreber tinha das outras pessoas como homens apressadamente improvisados, não acharemos difícil explicar estas catástrofes. O paciente retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo externo em geral, a catexia libidinal que até então havia dirigido para elas. Assim, tudo tornou-se indiferente e irrelevante para ele, e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária, como miraculado, apressadamente improvisado. O fim do mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo chegou ao fim, desde o retraimento de seu amor por ele.

Após Fausto ter pronunciado as maldições que o liberam do mundo, o coro dos Espíritos canta:

Weh! Weh!

Du hast sie zerstort,

die schöne Welt,

mit mächtiger Faust!

sie stürzt, sie zerfällt!

Ein Halbgott hat sie zerschlagen!

Mächtiger

der Erdensöhne,

Prächtiger

baue sie wieder,

in deinem Busen baue sie auf!

 

E o paranóico constrói-o de novo, não mais esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói-o com o trabalho de seus delírios. A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução. Tal reconstrução após a catástrofe é bem sucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente; nas palavras de Schreber, houve uma profunda mudança interna no mundo. Mas o indivíduo humano recapturou uma relação, e freqüentemente uma relação muito intensa, com as pessoas e as coisas do mundo, ainda que esta seja agora hostil, onde anteriormente fora esperançosamente afetuosa. Podemos dizer, então, que o processo da repressão propriamente dita consiste num desligamento da libido em relação às pessoas e coisas que foram anteriormente amadas. Acontece silenciosamente; dele não recebemos informações, só podemos inferi-lo dos acontecimentos subseqüentes. O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão e traz de volta novamente a libido para as pessoas que ela havia abandonado. Na paranóia, este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora. O exame completo do processo de projeção, que adiamos para outra ocasião, esclarecerá as dúvidas remanescentes sobre o assunto.

 

Entrementes, contudo, constitui fonte de alguma satisfação descobrir que o conhecimento que acabamos de adquirir nos envolve em várias argumentações adicionais.

(1) Nossa primeira reflexão revelar-nos-á que não é possível que esse desligamento da libido ocorra exclusivamente na paranóia; tampouco pode acontecer que, em outra parte que ocorra, tenha as mesmas conseqüências desastrosas. É bem possível que um desligamento da libido seja o mecanismo essencial e regular de toda repressão. Não podemos ter conhecimento positivo sobre esse ponto até que as outras perturbações que se baseavam na repressão tenham sido similarmente examinadas. Mas é certo que, na vida mental normal (e não apenas em períodos de luto), estamos constantemente desligando nossa libido, desta maneira, de pessoas ou de outros objetos, sem cairmos enfermos. Quando Fausto se libertou do mundo pela enunciação de suas maldições, o resultado não foi uma paranóia ou qualquer outra neurose, mas simplesmente uma exata estrutura geral da mente. Por conseguinte, o desligamento da libido não pode, em si próprio, ser o fator patogênico na paranóia; tem de haver alguma característica especial que distinga o desligamento paranóico da libido dos outros tipos. Não é difícil sugerir qual possa ser essa característica. Que emprego se faz da libido após ela ter sido liberada pelo processo de desligamento? Uma pessoa normal começará imediatamente a procurar um substituto para a ligação perdida e, até que esse substituto seja encontrado, a libido liberada será mantida em suspenso dentro da mente, e aí dará origem a tensões e alterará o seu humor. Na histeria, a libido liberada transforma-se em inervações somáticas ou em ansiedade. Na paranóia, porém, a evidência clínica vai demonstrar que a libido, após ter sido retirada do objeto, é utilizada de modo especial. Recordar-se-á [ver em [1]] que a maioria dos casos de paranóia exibe traços de megalomania, e que a megalomania pode, por si mesma, constituir uma paranóia. Disto pode-se concluir que, na paranóia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimento deste. Faz-se assim um retorno ao estádio do narcisismo (que reconhecemos como estádio do desenvolvimento da libido), no qual o único objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego. Com base nesta evidência clínica, podemos supor que os paranóicos trouxeram consigo uma fixação no estádio do narcisismo, e podemos asseverar que a extensão do retrocesso do homossexualismo sublimado para o narcisismo constitui medida da quantidade de regressão característica da paranóia.

(2) Objeção igualmente plausível pode-se basear na história clínica de Schreber, bem como em muitas outras. Pois pode-se alegar que os delírios de perseguição (que eram dirigidos contra Flechsig) inquestionavelmente surgiram em data anterior à da fantasia de fim do mundo; de maneira que o que se supõe ter sido um retorno do reprimido, realmente precedeu a própria repressão o que é absurdo patente. A fim de enfrentar esta objeção, temos de abandonar o campo elevado da generalização e descer à consideração pormenorizada das circunstâncias concretas, que são, indubitavelmente, muitíssimo mais complicadas. Temos de admitir a possibilidade de que um desligamento da libido como o que estamos examinando pudesse ser tanto parcial um recuo a partir de algum complexo isolado quanto geral. Um desligamento parcial seria, de longe, o mais comum dos dois, e deveria preceder o geral, visto que, inicialmente, é apenas para o desligamento parcial que as influências da vida fornecem motivo. O processo pode então interromper-se no estádio de um desligamento parcial ou pode estender-se ao geral, que em alta voz proclamará sua presença nos sintomas da megalomania. Dessa maneira, o desligamento da libido em relação à figura de Flechsig pode, não obstante, ter constituído o elementar no caso de Schreber; foi imediatamente seguido pelo aparecimento do delírio, que trouxe a libido de volta novamente para Flechsig (embora com sinal negativo, para assinalar o fato de que a repressão se efetuara) e anulou assim o trabalho da repressão. E então a batalha da repressão irrompe de novo, mas desta vez com armas mais poderosas. Na proporção em que o objeto de disputa se tornou a coisa mais importante do mundo externo, tentando, por um lado, arrastar a totalidade da libido para si, e, por outro, mobilizando todas as resistências contra si, assim também a luta que se trava em torno desse objeto único tornou-se cada vez mais comparável a um conflito geral; até que, por fim, uma vitória para a forças da repressão expressou-se na convicção de que o mundo chegara ao fim e de que somente o eu (self) sobrevivia. Se passarmos em revista as engenhosas construções erigidas pelo delírio de Schreber no campo da religião a hierarquia de Deus, as almas provadas, as antes-salas do Céu, o Deus inferior e o superior podemos avaliar, retrospectivamente, a quantidade de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido.

 

(3) Uma terceira consideração que surge das opiniões desenvolvidas nestas páginas é a seguinte: devemos supor que um desligamento geral da libido do mundo externo constitua agente eficaz o bastante para explicar o fim do mundo? Ou as catexias pelo ego ainda efetivas não teriam sido suficientes para manter rapport com o mundo externo? Para enfrentar esta dificuldade, teríamos ou de presumir que aquilo que chamamos de catexia libidinal (isto é, um interesse que emana de fontes eróticas) coincide com o interesse em geral, ou de considerar a possibilidade de que um distúrbio muito disseminado na distribuição da libido possa ocasionar perturbação correspondente nas catexias pelo ego. Mas estes são problemas que ainda nos achamos inteiramente impotentes e incompetentes para resolver. Seria diferente se pudéssemos partir de alguma teoria bem fundamentada dos instintos, mas, na realidade, nada disso possuímos à nossa disposição. Consideramos o instinto como sendo o conceito sobre a fronteira entre o simático e o mental, e vemos nele o representante psíquico de forças orgânicas. Ademais, aceitamos a distinção popular entre instintos do ego e instinto sexual, pois tal distinção parece concordar com a concepção biológica de que o indivíduo possui dupla orientação, visando, por um lado, à autopreservação e, por outro, à preservação das espécies. Além disso, porém, existem apenas hipóteses, que encampamos e estamos inteiramente prontos a abandonar de novo para que nos ajudassem a encontrar orientação no caso dos processos mais obscuros da mente. O que esperamos das investigações psicanalíticas dos processos patológicos mentais é exatamente que nos levem a algumas conclusões sobre questões vinculadas à teoria dos instintos. Estas investigações, contudo, acham-se no começo, e são realizadas apenas por pesquisadores isolados, de maneira que as esperanças que nelas depositamos devem ainda permanecer irrealizadas. Não podemos mais pôr de lado a possibilidade de que distúrbios da libido reajam sobre as catexias pelo ego. Na verdade, é provável que processos deste tipo constituam a característica istintiva das psicoses. O quanto de tudo isso se pode aplicar à paranóia é impossível dizer presentemente. Existe uma consideração, contudo, que gostaria de acentuar. Não se pode asseverar que um paranóico, mesmo no auge da repressão, retire completamente seu interesse do mundo externo como se julga ocorrer em alguns outros tipos de psicose alucinatória (tais como a amência de Meynert). O paranóico percebe o mundo externo e leva em consideração quaisquer alterações que nele possam acontecer, e o efeito que aquele lhe causa estimula-o a inventar teorias explanatórias (tais como os homens apressadamente improvisados, de Schreber). Parece-me, portanto, muito mais provável que a relação alterada do paranóico com o mundo deva ser explicada inteira ou principalmente pela perda de seu interesse libidinal.

(4) É impossível evitar perguntar, em vista da estreita vinculação entre os dois distúrbios, até onde esta concepção de paranóia afetará a nossa concepção de demência precoce. Sou de opinião que Kraepelin estava inteiramente justificado em tomar a medida de separar grande parte do que até então havia sido chamado de paranóia e fundi-la, junto com a catatonia e certas outras formas de doença, numa nova entidade clínica embora demência precoce fosse um nome particularmente infeliz de se escolher para ela. A designação escolhida por Bleuler para o mesmo grupo de formas esquizofrenia acha-se também exposta à objeção, de que o nome parece apropriado contanto que esqueçamos seu significado literal, pois, de outro modo, ele cria prevenção contra o assunto, visto basear-se numa característica da moléstia postulada teoricamente característica, além disso, que não pertence exclusivamente a essa doença, e que, à luz de outras considerações, não pode ser encarada como sendo a essencial. Em geral, contudo, não são de muito grande importância as denominações, que damos aos quadros clínicos. O que me parece mais essencial é que a paranóia deve ser mantida com um tipo clínico independente, por mais freqüentemente que o quadro que ofereça possa ser complicado pela presença de características esquizofrênicas. Do ponto de vista da teoria da libido, embora se assemelhe à demência precoce na medida em que a repressão propriamente dita em ambas as moléstias teria o mesmo aspecto principal desligamento da libido, juntamente com sua regressão para o ego , ela se distinguiria da demência precoce por ter sua fixação disposicional diferentemente localizada e por possuir um mecanismo diverso para o retorno do reprimido (isto é, para a formação de sintomas). Parecer-me-ia plano mais conveniente dar à demência precoce o nome de parafrenia. Este termo não possui conotação especial e serviria para indicar um relacionamento com a paranóia (nome que não pode ser modificado) e, além disso, relembraria a hebefrenia, entidade que hoje se acha fundida com a demência precoce. É verdade que o nome já foi proposto para outros fins, mas isto não precisa nos preocupar, visto que as aplicações alternativas ainda não passaram para uso geral.

Abraham muito convincentemente demonstrou que o afastamento da libido do mundo externo é uma característica particular e claramente marcada da demência precoce. Desta característica inferimos que a repressão é efetuada por meio do desligamento da libido. Aqui, mais uma vez, podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a repressão e uma tentativa de restabelecimento, por devolver a libido novamente a seus objetos. [Cf. em [1]]. Jung, com extraordinário acume analítico, percebeu que os delírios (delíria) e estereótipos motores que ocorrem nessa perturbação são os resíduos de antigas catexias objetais, que se apegam com grande persistência. Essa tentativa de restabelecimento, que os observadores equivocadamente tomam pela própria doença, não faz uso da projeção, como na paranóia, mas emprega um mecanismo alucinatório (histérico). Este é um dos principais aspectos em que a demência precoce difere da paranóia e esta diferença pode ser geneticamente explicada a partir de outro ângulo. A segunda diferença é demonstrada pelo resultado da doença naqueles casos em que o processo não permaneceu demasiadamente restrito. O prognóstico, em geral, é mais desfavorável do que na paranóia. A vitória fica com a reconstrução. A regressão estende-se não simplesmente ao narcisismo (manifestando-se sob a forma de megalomania), mas a um completo abandono do amor objetal e um retorno ao auto-erotismo infantil. A fixação disposicional deve, portanto, achar-se situada mais atrás do que na paranóia, e residir em algum lugar no início do curso do desenvolvimento entre o auto-erotismo e o amor objetal. Além disso, não é de modo algum provável que impulsos homossexuais, tão freqüentemente talvez invariavelmente encontrados na paranóia, desempenham papel igualmente importante na etiologia dessa enfermidade muito mais abrangente, a demência precoce.

Nossas hipóteses quanto às fixações disposicionais na paranóia e na parafrenia tornam fácil perceber que um caso pode começar por sintomas paranóides e, apesar disso, transformar-se em demência precoce, e que fenômenos paranóides e esquizofrênicos podem achar-se combinados em qualquer proporção. E podemos compreender como um quadro clínico como o de Schreber pode ocorrer, e merecer o nome de demência paranóide, a partir do fato de que, na produção de uma fantasia de desejo e de alucinações, ele apresenta traços parafrênicos, enquanto que, na causa ativadora, no emprego do mecanismo da projeção, e no desfecho, exibe um caráter paranóide. Porque é possível que diversas fixações sejam abandonadas no curso do desenvolvimento, e cada uma delas, sucessivamente, pode permitir uma irrupção da libido que havia sido impelida para fora começando talvez com as últimas fixações adquiridas, e passando, à medida que a moléstia se desenvolve, às originais, que se acham mais perto do ponto de partida. Gostaríamos de saber a que condições o resultado relativamente favorável do presente caso se deve; pois não podemos de bom grado atribuir toda a responsabilidade pelo desfecho a algo tão casual quanto a melhora devido à mudança de domicílio, que se estabeleceu após a remoção do paciente da clínica de Flechsig. Mas nosso conhecimento insuficiente das circunstâncias íntimas da história clínica torna impossível fornecer resposta a essa interessante questão. Pode-se suspeitar, contudo, que aquilo que capacitou Schreber a reconciliar-se com sua fantasia homossexual, e possibilitou à sua moléstia terminar em algo que se aproxima de um restabelecimento, pode ter sido o fato de que seu complexo paterno se achava, principalmente, afinado de maneira positiva, e que, na vida real, os anos finais de seu relacionamento com um pai excelente provavelmente não foram tempestuosos.

Visto não temer a crítica dos outros nem esquivar-me de criticar a mim próprio, não tenho motivos para evitar a menção de uma semelhança que tem possibilidade de prejudicar nossa teoria da libido na opinião de muitos de meus leitores. Os raios de Deus de Schreber, que se constituíam de uma condensação de raios de Sol, fibras nervosas e espermatozóides [ver em [1]], nada mais são, na realidade, que uma representação concreta e uma projeção para o exterior de catexias libidinais, e emprestam assim a seus delírios uma conformidade marcante com nossa teoria. A crença de que o mundo deveria acabar porque seu ego estava atraindo todos os raios para si, a preocupação ansiosa num período posterior, durante o processo de reconstrução, de que Deus rompesse Sua vinculação de raios com ele esses e muitos outros pormenores da estrutura delirante de Schreber soam quase como percepções endo-psíquicas dos processos cuja existência presumi nestas páginas, como base de nossa explicação da paranóia. Posso, não obstante, invocar um amigo e colega especialista para testemunhar que desenvolvi minha teoria da paranóia antes de me familiarizar com o conteúdo do livro de Schreber. Compete ao futuro decidir se existe mais delírio em minha teoria do que eu gostaria de admitir, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que outras pessoas estão, por enquanto, preparadas para acreditar.

Por fim, não posso concluir o presente trabalho que, mais uma vez, constitui apenas fragmento de um todo maior sem prenunciar as duas teses principais no sentido de cujo estabelecimento a teoria da libido das neuroses e das psicoses está avançando: a saber, que as neuroses surgem, principalmente, de um conflito entre o ego e o instinto sexual, e que as formas que elas assumem guardam a marca do curso do desenvolvimento seguido pela libido e pelo ego.

 

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