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O MECANISMO DA PARANÓIA

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III - SOBRE O MECANISMO DA PARANÓIA

 

 

Estivemos até aqui lidando com o complexo paterno, elemento dominante no caso de Schreber, e com a fantasia de desejos em torno da qual a doença se centralizou. Mas, em tudo isso, nada existe de característico da enfermidade conhecida como paranóia, nada que não possa ser encontrado (e que não tenha sido, em verdade, encontrado) em outros tipos de neuroses. O caráter distintivo da paranóia (ou da dementia paranoides) deve ser procurar alhures, a saber, na forma específica assumida pelos sintomas; e esperamos descobrir que esta é determinada, não pela natureza dos próprios complexos, mas pelo mecanismo mediante o qual os sintomas são formados ou a repressão é ocasionada. Tenderíamos a dizer que caracteristicamente paranóico na doença foi o fato de o paciente, para repelir uma fantasia de desejo homossexual, ter reagido precisamente com delírios de perseguição desta espécie.

 

 

"In 1911 psychoanalyst Sigmund Freud based his hypothesis that Schreber's paranoid delusions were due to his defence against unavowed homosexual desires and fantasies towards Flechsig as a father substitute on this text."  [ Cf. A Short History of Psychiatry at Leipzig University ]

 

 

"aus einer Abwehr uneingestandener homosexueller Wunschfantasien"   [ Cf. Kurze Geschichte der Leipziger Universitätspsychiatrie ]

 

Estas considerações emprestam, portanto, peso adicional à circunstância de que somos, na realidade, levados pela experiência a atribuir às fantasias de desejo homossexuais uma relação íntima (talvez invariável) com essa forma específica de enfermidade. Duvidando de minha própria experiência no assunto, durante os últimos anos reuni-me a meus amigos C.G. Jung, de Zurique, e Sándor Ferenczi, de Budapest, para pesquisar, sob esta única característica, certo número de casos de distúrbio paranóide que tinham estado sob observação. Os pacientes cujas histórias forneceram o material para esta pesquisa incluíam tanto homens quanto mulheres e variavam quanto à raça, ocupação e posição social. Ainda assim, ficamos estupefatos ao descobrir que, em todos esses casos, uma defesa contra o desejo homossexual era claramente identificável no próprio centro do conflito subjacente à moléstia, e que fora numa tentativa de dominar uma corrente inconscientemente reforçada de homossexualismo que todos eles haviam fracassado. Isso certamente não era o que havíamos esperado.

 

A paranóia constitui exatamente um distúrbio no qual a etiologia sexual de maneira alguma é óbvia; longe disso, as características notavelmente relevantes na origem da paranóia, particularmente entre indivíduos do sexo masculino, são as humilhações e desconsiderações sociais. Mas, se nos aprofundarmos apenas um pouco mais no assunto, poderemos perceber que o fator realmente eficaz nessas afrontas sociais reside na parte que nelas desempenham os componentes homossexuais da vida emocional. Enquanto o indivíduo age normalmente e é, por conseguinte, impossível perscrutar as profundezas de sua vida psíquica, podemos duvidar que suas relações emocionais com o próximo na sociedade tenham algo a ver com a sexualidade, concretamente ou em sua gênese. Mas os delírios nunca deixam de revelar estas relações e de remontar os sentimentos sociais às suas raízes num desejo erótico positivamente sensual. Enquanto foi sadio, também o Dr. Schreber, cujos delírios culminaram por uma fantasia de desejo de natureza inequivocamente homossexuais, não havia, segundo afirmam todos, demonstrado quaisquer sinais de homossexualismo no sentido comum da palavra.

 

Esforçar-me-ei agora (e penso que a tentativa não é desnecessária nem injustificável) por demonstrar que o conhecimento dos processos psicológicos, que graças à psicanálise hoje possuímos, já nos permite compreender o papel desempenhado por um desejo homossexual no desenvolvimento da paranóia. Pesquisas recentes dirigiram nossa atenção para um estádio do desenvolvimento da libido, entre o auto-erotismo e o amor objetal. Este estádio recebeu o nome de narcisismo. O que acontece é o seguinte: chega uma ocasião, no desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne seus instintos sexuais (que até aqui haviam estado empenhados em atividades auto-eróticas), a fim de conseguir um objeto amoroso; e começa por tomar a si próprio, seu próprio corpo, como objeto amoroso, sendo apenas subseqüentemente que passa daí para a escolha de alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto. Essa fase eqüidistante entre o auto-erotismo e o amor objetal pode, talvez, ser indispensável normalmente; mas parece que muitas pessoas se demoram por tempo inusitadamente longo nesse estado e que muitas de suas características são por elas transportadas para os estádios posteriores de seu desenvolvimento. De importância principal no eu (self) do sujeito assim escolhido como objeto amoroso já podem ser os órgãos genitais. A linha de desenvolvimento, então, conduz à escolha de um objeto externo com órgãos genitais semelhantes isto é, a uma escolha objetal homossexual e daí ao heterossexualismo. As pessoas que se tornam homossexuais manifestas mais tarde, nunca se emanciparam, pode-se presumir, da condição obrigatória de que o objeto de sua escolha deve possuir órgãos genitais como os seus; e, com relação a isto, as teorias sexuais infantis que atribuem o mesmo tipo de órgãos genitais a ambos os sexos exercem muita influência. [Cf. Freud, 1908c.]

 

Após o estádio de escolha objetal heterossexual ter sido atingido, as tendências homossexuais não são, como se poderia supor, postas de lado ou interrompidas; são simplesmente desviadas de seu objetivo sexual e aplicadas a novas utilizações. Combinam-se agora com partes dos instintos do ego e, como componentes ligados, ajudam a constituir os instintos sociais, contribuindo assim como um fator erótico para a amizade e a camaradagem, para o esprit de corps e o amor à humanidade em geral. Quão grande é a contribuição realmente derivada de fontes eróticas (com o objetivo sexual inibido) dificilmente poder-se-ia adivinhar pelas relações sociais normais da humanidade. Mas não é irrelevante observar que são precisamente os homossexuais manifestos, e entre eles exatamente aqueles que se colocam contra a tolerância quanto a atos sensuais, que se distinguem por participação particularmente ativa nos interesses gerais da humanidade interesses que por si mesmo se originaram de uma sublimação de instintos eróticos.

 

Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade em 1911

 

Em meus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade [Ver em [1], 1972], expressei a opinião de que cada estádio no desenvolvimento da psicossexualidade fornece uma possibilidade de fixação, e, assim, de um ponto disposicional. As pessoas que não se libertaram completamente do estádio de narcisismo que, equivale a dizer, têm nesse ponto uma fixação que pode operar como disposição para uma enfermidade posterior acham-se expostas ao perigo de que alguma vaga de libido excepcionalmente intensa, não encontrando outro escoadouro, possa conduzir a uma sexualização de seus instintos sociais e desfazer assim as sublimações que haviam alcançado no curso de seu desenvolvimento. Este resultado pode ser produzido por qualquer coisa que faça a libido fluir regressivamente (isto é, que causa uma regressão): quer, por um lado, a libido se torne colateralmente reforçada, devido a algum desapontamento com uma mulher, ou seja diretamente represada devido a um infortúnio nas relações sociais com outros homens, ambos os casos sendo exemplos de frustração; quer, por outro lado, haja uma intensificação geral da libido, de maneira que ela se torne poderosa demais para encontrar um escoadouro ao longo dos canais que já lhe estão abertos, e, conseqüentemente, irrompa por suas margens no ponto mais fraco. Visto nossas análises demonstrarem que os paranóicos se esforçam por proteger-se contra esse tipo de sexualização de suas catexias sociais instintuais, somos levados a supor que o ponto fraco em seu desenvolvimento deve ser procurado em algum lugar entre os estádios de auto-erotismo, narcisismo e homossexualismo, e que sua disposição à enfermidade (que talvez seja suscetível de definição mais precisa) deve estar localizada nessa região. Uma disposição semelhante teria de ser atribuída aos pacientes que sofrem da demência precoce de Kraepelin ou de (como Bleuler a denominou) esquizofrenia; e esperamos, posteriormente, encontrar pistas que nos permitam remontar às diferenças entre os dois distúrbios (com referência tanto à forma que assumem quanto ao curso que seguem) a diferenças correspondentes nas fixações disposicionais dos pacientes.

 

Regiões de fronteiras: o dentro e o fora [interno/externo]

 

Assumindo então o ponto de vista de que o que jaz no cerne do conflito, nos casos de paranóia entre indivíduos do sexo masculino, é uma fantasia de desejo homossexual de amar um homem, certamente não esqueceremos que a confirmação de hipótese tão importante só pode decorrer da investigação de um grande número de exemplos de toda espécie de distúrbio paranóide. Temos, portanto, de estar preparados, se preciso for, para limitar nossa assertiva a um único tipo de paranóia. Não obstante, constitui fato notável que as principais formas de paranóia conhecidas podem ser todas representadas como contradições da proposição única eu (um homem) o amo (um homem), e que, na verdade, exaurem todas as maneiras possíveis em que tais contradições poderiam ser formuladas.

 

A proposição eu (um homem) o amo é contraditada por:

(a) Delírios de perseguição, pois eles ruidosamente asseveram:

Eu não o amo Eu o odeio.

 

Esta contradição, que deve ter sido enunciada assim no inconsciente, não pode, contudo, tornar-se consciente para um paranóico sob essa forma. O mecanismo de formação de sintomas na paranóia exige que as percepções internas sentimentos sejam substituídas por percepções externas.

 

Conseqüentemente, a proposição eu o odeio transforma-se, por projeção, em outra: Ele me odeia (persegue), o que me desculpará por odiá-lo. E, assim, o sentimento inconsciente compulsivo surge como se fosse a conseqüência de uma percepção externa:

 

Eu não o amo eu o odeio, porque ELE ME PERSEGUE.

A observação não deixa lugar para dúvidas de que o perseguidor é alguém que foi outrora amado.

 

(b) Outro elemento é escolhido para a contradição na erotomania, que permanece totalmente ininteligível sob qualquer outro ponto de vista:

Eu não o amo eu a amo.

E, em obediência à mesma necessidade de projeção, a proposição é transformada em: Eu noto que ela me ama.

Eu não o amo eu a amo, porque ELA ME AMA.

 

É possível a muitos casos de erotomania dar a impressão de que poderiam ser satisfatoriamente explicados como fixações heterossexuais exageradas ou deformadas, se nossa atenção não fosse atraída pela circunstância de que essas afeições começam invariavelmente não por qualquer percepção interna de amar, mas por uma percepção externa de ser amado. Nessa forma de paranóia, porém, a proposição intermediária eu a amo também se pode tornar consciente, porque a contradição entre ela e a proposição original não é diametral nem tão irreconciliável como a existente entre amor e ódio; afinal de contas, é possível amar tanto ela quanto ele. Assim, pode acontecer que a proposição que foi substituída por projeção (ela me ama) abra caminho novamente para a proposição da língua básica eu a amo.

 

(c) A terceira modalidade pela qual a proposição original pode ser contraditada seria por delírios de ciúme, que podemos estudar nas formas características sob que aparecem em cada sexo.

 

(a)   Delírios alcoólicos de ciúme. O papel desempenhado pelo álcool nesse distúrbio é, sob todos os aspectos, inteligível. Sabemos que aquela fonte de prazer afasta inibições e desfaz sublimações. Não é raro que o desapontamento com uma mulher leve um homem a beber mas isso significa, geralmente, que ele recorre ao bar e à companhia de homens, que lhe proporcionam a satisfação emocional que deixou de conseguir de sua mulher em casa. Se então esses homens se tornarem os objetos de uma forte catexia libidinal em seu inconsciente, ele a repelirá com o terceiro tipo de contradição:

 

Não sou eu quem ama o homem ela o ama, e suspeita da mulher em relação a todos os homens a quem ele próprio é incitado a amar.

 

A deformação por meio da projeção acha-se necessariamente ausente nesse caso, visto que, com a mudança do sujeito que ama, todo o processo é, de qualquer modo, lançado para fora do ego. O fato de a mulher amar os homens constitui matéria de percepção externa para ele, ao passo que os fatos de que ele próprio não ama, mas odeia, ou de que ele mesmo ama, não esta, mas aquela pessoa, são assuntos de percepção interna.

 

(b) Os delírios de ciúme nas mulheres são exatamente análogos.

Não sou eu quem ama as mulheres ele as ama.

A mulher ciumenta suspeita do marido em relação a todas as mulheres por quem ela própria é atraída, devido ao seu homossexualismo e ao efeito disposicional de seu narcisismo excessivo. A influência da época da vida em que sua fixação ocorreu é claramente demonstrada pela seleção dos objetos amorosos que imputa ao marido; são amiúde velhas e inteiramente inapropriadas para uma relação amorosa real revivescência das babás, criadas e meninas que foram suas amigas na infância, ou das irmãs, que foram suas rivais verdadeiras.

Ora, poder-se-ia supor que uma proposição composta de três termos, tal como eu o amo, só pudesse ser contestada por três maneiras diferentes. Os delírios de ciúme contradizem o sujeito, os delírios de perseguição contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o objeto.

Na realidade, porém, é possível um quarto tipo de contradição a saber, aquele que rejeita a proposição como um todo:

Não amo de modo algum não amo ninguém.

 

E visto que, afinal de contas, a libido tem de ir para algum lugar, essa proposição parece ser o equivalente psicológico da proposição: Eu só amo a mim mesmo. Desta maneira, esse tipo de contradição dar-nos-ia a megalomania, que podemos encarar como uma supervalorização sexual do ego e ser assim colocada ao lado da supervalorização do objeto amoroso, com a qual já nos achamos familiarizados.

 

É de alguma importância, com relação a outras partes da teoria da paranóia, observar que podemos detectar um elemento de megalomania na maioria das outras formas de distúrbio paranóide. É justo presumir que a megalomania é essencialmente de natureza infantil e que, à medida que o desenvolvimento progride, ela é sacrificada às considerações sociais. Do mesmo modo, a megalomania de um indivíduo nunca é tão veementemente abafada como quando ele se acha em poder de um amor irresistível:

Denn wo die Lieb erwachet, stirbt

das Ich, der finstere Despot.

Após este exame do papel inesperadamente importante desempenhado pelas fantasias de desejo homossexuais na paranóia, retornemos aos dois fatores em que esperávamos, desde o princípio, encontrar os sinais característicos da paranóia, a saber, o mecanismo pelo qual os sintomas são formados e o mecanismo pelo qual a repressão é ocasionada [ver em [1]].

Certamente não temos direito de começar por presumir que estes dois mecanismos são idênticos e que a formação de sintomas segue o mesmo caminho que a repressão, cada qual avançando ao longo dele, talvez, em direção oposta. Tampouco parece haver qualquer grande possibilidade de que tal identidade exista. Não obstante, abster-nos-emos de expressar qualquer opinião sobre o assunto até termos completado nossa pesquisa.

 

A característica mais notável da formação de sintomas na paranóia é o processo que merece o nome de projeção. Uma percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa.

 

Nos delírios de perseguição, a deformação consiste numa transformação do afeto; o que deveria ter sido sentido internamente como amor é percebido externamente como ódio. Deveríamos sentir-nos tentados a encarar esse processo notável como o elemento mais importante na paranóia e dela absolutamente patognomônico, se oportunamente não nos lembrássemos de duas coisas.

 

Em primeiro lugar, a projeção não desempenha o mesmo papel em todas as formas de paranóia; e, em segundo, ela faz seu aparecimento não apenas na paranóia mas também sob outras condições psicológicas, e de fato é-lhe concedida participação regular em nossa atitude para com o mundo externo. Pois, quando atribuímos as causas de certas sensações ao mundo externo, ao invés de procurá-las (como fazemos no caso dos outros) dentro de nós mesmos, esse procedimento normal também merece ser chamado de projeção. Cientes de que problemas psicológicos mais gerais acham-se envolvidos na questão da natureza da projeção, decidamos adiar sua investigação (e, com ela, a do mecanismo da formação paranóide de sintomas em geral) para outra ocasião, e passemos agora a considerar que idéias podemos reunir sobre o tema do mecanismo da repressão na paranóia. Gostaria de dizer ao mesmo tempo, para justificar esta renúncia temporária, que descobriremos que a maneira pela qual o processo de repressão ocorre acha-se muito mais intimamente vinculada à história do desenvolvimento da libido e à disposição a que ele dá origem, do que a maneira pela qual os sintomas se formam

.

Na psicanálise, acostumamo-nos a encarar os fenômenos patológicos como derivados, de maneira geral, da repressão. Se examinarmos mais de perto o que é chamado de repressão, encontraremos razões para dividir o processo em três fases que são facilmente distinguíveis uma da outra, conceptualmente.

 

(1)   A primeira fase consiste na fixação, que é a precursora e condição necessária de toda repressão. A fixação pode ser descrita da seguinte maneira: determinado instinto ou componente instintual deixa de acompanhar os demais ao longo do caminho normal previsto de desenvolvimento, e, em conseqüência desta inibição em seu desenvolvimento, é deixado para trás, num estádio mais infantil. A corrente libidinal em apreço comporta-se então, em relação a estruturas psicológicas posteriores, como se pertencesse ao sistema do inconsciente, como reprimida. Já demonstramos [ver em [1]] que essas fixações instintuais constituem a base para a disposição à enfermidade subseqüente, e podemos agora acrescentar que elas constituem, acima de tudo, a base para a determinação do resultado da terceira fase da repressão.

 

(2)   A segunda fase da repressão é a da repressão propriamente dita fase à qual foi dada, até aqui, a máxima atenção. Provém dos sistemas mais altamente desenvolvidos do ego sistemas capazes de serem conscientes e pode, na realidade, ser descrita como um processo de pós-pressão. Aparenta ser um processo essencialmente ativo, ao passo que a fixação parece de fato constituir um retardamento passivo. Podem sofrer repressão que os derivados psíquicos dos instintos retardados originais, quando estes se reforçam e entram assim em conflito com o ego (ou instintos egossintônicos), quer tendências psíquicas que, por outras razões, despertaram uma forte aversão. Mas esta aversão, em si própria, não conduziria à repressão, a menos que alguma vinculação tenha sido estabelecida e entre as tendências indesejáveis que têm de ser reprimidas e aquelas que já o foram. Onde isso acontece, a repulsa exercida pelo sistema consciente e a atração exercida pelo inconsciente tendem na mesma direção, no sentido de ocasionar a repressão. As duas possibilidades que são aqui isoladamente tratadas podem, talvez, ser menos nitidamente diferençadas na prática, e a distinção entre elas pode depender simplesmente do maior ou menor grau em que os instintos primariamente reprimidos contribuem para o resultado.

 

(3)   A terceira fase, e a mais importante no que se refere aos fenômenos patológicos, é a do fracasso da repressão, da irrupção, do retorno do reprimido. Esta irrupção toma seu impulso do ponto de fixação, e implica uma regressão do desenvolvimento libidinal a esse ponto.

 

 

Já aludimos [Ver a partir de [1].] à multiplicidade dos pontos possíveis de fixação; existem na realidade, tantos quantos são os estádios no desenvolvimento da libido. Devemos estar preparados para encontrar uma multiplicidade semelhante de mecanismos da repressão propriamente dita e de mecanismos de irrupção (ou de formação de sintomas), e já podemos começar a suspeitar que não será possível remontar todas essas multiplicidades somente à história desenvolvimental da libido.

 

      É fácil perceber que esse exame está começando a invadir o problema da escolha da neurose, que, contudo, não pode ser abordado até que um trabalho preliminar de outro tipo tenha sido realizado. Mantenhamos em mente, por enquanto, que já tratamos da fixação, e que adiamos o assunto da formação de sintomas; e restrinjamo-nos à questão de saber se a análise do caso de Schreber lança alguma luz sobre o mecanismo da repressão propriamente dita que predomina na paranóia.

 

No clímax de sua moléstia, sob a influência de visões que eram parcialmente de caráter terrificante, mas em parte, também, de grandeza indescritível (73), Schreber convenceu-se da iminência de uma grande catástrofe, do fim do mundo. Vozes disseram-lhe que o trabalho dos 14.000 anos passados viera agora a dar em nada, e que o período de vida concedido à Terra era apenas 212 anos mais (71); durante a última parte de sua estada na clínica de Flechsig, acreditou que esse período já havia passado. Ele próprio era o único homem real deixado vivo e as poucas formas humanas que ainda via o médico, os assistentes, os outros pacientes explicava-as como miraculadas, homens apressadamente improvisados. Ocasionalmente, a corrente inversa de sentimento também aparecia: foi colocado em suas mãos um jornal no qual havia um comunicado de sua própria morte (81); ele próprio existia sob forma secundária, inferior, e sob esta forma secundária, certo dia tranqüilamente faleceu (73). Mas a forma de seu delírio, em que seu ego era mantido e o mundo sacrificado, mostrou ser, de longe, a mais poderosa. Ele tinha várias teorias sobre a causa da catástrofe. Certa ocasião, teve em mente um processo de glaciação devido a retirada do Sol; em outra, seria a destruição por um terremoto, ocorrência na qual ele, com sua capacidade de vidente de espíritos, deveria representar papel dominante, tal como se alega que outro vidente desempenhou no terremoto de Lisboa de 1755. (91.) Ou, então, Flechsig era o culpado, visto que através de suas artes mágicas semeara o medo e o terror entre os homens, destruíra os fundamentos da religião e disseminara distúrbios nervosos gerais e imoralidades, de modo que pestilências devastadoras se haviam abatido sobre a humanidade. (91.) Em qualquer caso, o fim do mundo era a conseqüência do conflito que irrompera entre ele Flechsig ou, de acordo com a etiologia adotada na segunda fase de seu delírio, do vínculo indissolúvel que se formara entre ele e Deus; era, na realidade, o resultado inevitável de sua doença. Anos após, quando o Dr. Schreber retornou à sociedade humana, e não podia encontrar os livros, nas partituras musicais ou nos outros artigos de uso cotidiano que lhe caíam mais uma vez nas mãos traço algum que corroborasse sua teoria de que tinha havido um hiato de imensa duração na história da humanidade, ele admitiu que sua opinião não era mais sustentável:

 Não posso mais evitar reconhecer que, considerado externamente, tudo está como costumava ser. Se, todavia, não pode ter havido uma profunda mudança interna é uma questão a que retornarei mais tarde. (84-5.) Ele não se podia permitir duvidar que, durante sua moléstia, o mundo havia chegado ao fim e que, apesar de tudo, aquele que agora via diante de si era um mundo diferente.

 

Uma catástrofe mundial deste tipo não é infreqüente durante o estádio agitado em outros casos de paranóia. Se nos basearmos em nossa teoria da catexia libidinal, e seguirmos a sugestão dada pela visão que Schreber tinha das outras pessoas como homens apressadamente improvisados, não acharemos difícil explicar estas catástrofes. O paciente retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo externo em geral, a catexia libidinal que até então havia dirigido para elas. Assim, tudo tornou-se indiferente e irrelevante para ele, e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária, como miraculado, apressadamente improvisado. O fim do mundo é a projeção dessa catástrofe interna; seu mundo subjetivo chegou ao fim, desde o retraimento de seu amor por ele.

Após Fausto ter pronunciado as maldições que o liberam do mundo, o coro dos Espíritos canta:

Weh! Weh!

Du hast sie zerstort,

die schöne Welt,

mit mächtiger Faust!

sie stürzt, sie zerfällt!

Ein Halbgott hat sie zerschlagen!

Mächtiger

der Erdensöhne,

Prächtiger

baue sie wieder,

in deinem Busen baue sie auf!

 

E o paranóico constrói-o de novo, não mais esplêndido, é verdade, mas pelo menos de maneira a poder viver nele mais uma vez. Constrói-o com o trabalho de seus delírios. A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução. Tal reconstrução após a catástrofe é bem sucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente; nas palavras de Schreber, houve uma profunda mudança interna no mundo. Mas o indivíduo humano recapturou uma relação, e freqüentemente uma relação muito intensa, com as pessoas e as coisas do mundo, ainda que esta seja agora hostil, onde anteriormente fora esperançosamente afetuosa. Podemos dizer, então, que o processo da repressão propriamente dita consiste num desligamento da libido em relação às pessoas e coisas que foram anteriormente amadas. Acontece silenciosamente; dele não recebemos informações, só podemos inferi-lo dos acontecimentos subseqüentes. O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão e traz de volta novamente a libido para as pessoas que ela havia abandonado.

 

Paranóia: Um obstáculo chamado recalcamento

 

Na paranóia, este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora.

 

O exame completo do processo de projeção, que adiamos para outra ocasião, esclarecerá as dúvidas remanescentes sobre o assunto.

 

Entrementes, contudo, constitui fonte de alguma satisfação descobrir que o conhecimento que acabamos de adquirir nos envolve em várias argumentações adicionais.

(1)              Nossa primeira reflexão revelar-nos-á que não é possível que esse desligamento da libido ocorra exclusivamente na paranóia; tampouco pode acontecer que, em outra parte que ocorra, tenha as mesmas conseqüências desastrosas. É bem possível que um desligamento da libido seja o mecanismo essencial e regular de toda repressão. Não podemos ter conhecimento positivo sobre esse ponto até que as outras perturbações que se baseavam na repressão tenham sido similarmente examinadas. Mas é certo que, na vida mental normal (e não apenas em períodos de luto), estamos constantemente desligando nossa libido, desta maneira, de pessoas ou de outros objetos, sem cairmos enfermos. Quando Fausto se libertou do mundo pela enunciação de suas maldições, o resultado não foi uma paranóia ou qualquer outra neurose, mas simplesmente uma exata estrutura geral da mente. Por conseguinte, o desligamento da libido não pode, em si próprio, ser o fator patogênico na paranóia; tem de haver alguma característica especial que distinga o desligamento paranóico da libido dos outros tipos. Não é difícil sugerir qual possa ser essa característica. Que emprego se faz da libido após ela ter sido liberada pelo processo de desligamento? Uma pessoa normal começará imediatamente a procurar um substituto para a ligação perdida e, até que esse substituto seja encontrado, a libido liberada será mantida em suspenso dentro da mente, e aí dará origem a tensões e alterará o seu humor. Na histeria, a libido liberada transforma-se em inervações somáticas ou em ansiedade. Na paranóia, porém, a evidência clínica vai demonstrar que a libido, após ter sido retirada do objeto, é utilizada de modo especial. Recordar-se-á [ver em [1]] que a maioria dos casos de paranóia exibe traços de megalomania, e que a megalomania pode, por si mesma, constituir uma paranóia. Disto pode-se concluir que, na paranóia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimento deste. Faz-se assim um retorno ao estádio do narcisismo (que reconhecemos como estádio do desenvolvimento da libido), no qual o único objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego. Com base nesta evidência clínica, podemos supor que os paranóicos trouxeram consigo uma fixação no estádio do narcisismo, e podemos asseverar que a extensão do retrocesso do homossexualismo sublimado para o narcisismo constitui medida da quantidade de regressão característica da paranóia.

 

(2)              Objeção igualmente plausível pode-se basear na história clínica de Schreber, bem como em muitas outras. Pois pode-se alegar que os delírios de perseguição (que eram dirigidos contra Flechsig) inquestionavelmente surgiram em data anterior à da fantasia de fim do mundo; de maneira que o que se supõe ter sido um retorno do reprimido, realmente precedeu a própria repressão o que é absurdo patente. A fim de enfrentar esta objeção, temos de abandonar o campo elevado da generalização e descer à consideração pormenorizada das circunstâncias concretas, que são, indubitavelmente, muitíssimo mais complicadas. Temos de admitir a possibilidade de que um desligamento da libido como o que estamos examinando pudesse ser tanto parcial um recuo a partir de algum complexo isolado quanto geral. Um desligamento parcial seria, de longe, o mais comum dos dois, e deveria preceder o geral, visto que, inicialmente, é apenas para o desligamento parcial que as influências da vida fornecem motivo. O processo pode então interromper-se no estádio de um desligamento parcial ou pode estender-se ao geral, que em alta voz proclamará sua presença nos sintomas da megalomania.

(3)              Dessa maneira, o desligamento da libido em relação à figura de Flechsig pode, não obstante, ter constituído o elementar no caso de Schreber; foi imediatamente seguido pelo aparecimento do delírio, que trouxe a libido de volta novamente para Flechsig (embora com sinal negativo, para assinalar o fato de que a repressão se efetuara) e anulou assim o trabalho da repressão. E então a batalha da repressão irrompe de novo, mas desta vez com armas mais poderosas. Na proporção em que o objeto de disputa se tornou a coisa mais importante do mundo externo, tentando, por um lado, arrastar a totalidade da libido para si, e, por outro, mobilizando todas as resistências contra si, assim também a luta que se trava em torno desse objeto único tornou-se cada vez mais comparável a um conflito geral; até que, por fim, uma vitória para a forças da repressão expressou-se na convicção de que o mundo chegara ao fim e de que somente o eu (self) sobrevivia. Se passarmos em revista as engenhosas construções erigidas pelo delírio de Schreber no campo da religião a hierarquia de Deus, as almas provadas, as antes-salas do Céu, o Deus inferior e o superior podemos avaliar, retrospectivamente, a quantidade de sublimações transformadas em ruínas pela catástrofe do desligamento geral da libido.

 

(4)              Uma terceira consideração que surge das opiniões desenvolvidas nestas páginas é a seguinte: devemos supor que um desligamento geral da libido do mundo externo constitua agente eficaz o bastante para explicar o fim do mundo? Ou as catexias pelo ego ainda efetivas não teriam sido suficientes para manter rapport com o mundo externo? Para enfrentar esta dificuldade, teríamos ou de presumir que aquilo que chamamos de catexia libidinal (isto é, um interesse que emana de fontes eróticas) coincide com o interesse em geral, ou de considerar a possibilidade de que um distúrbio muito disseminado na distribuição da libido possa ocasionar perturbação correspondente nas catexias pelo ego. Mas estes são problemas que ainda nos achamos inteiramente impotentes e incompetentes para resolver. Seria diferente se pudéssemos partir de alguma teoria bem fundamentada dos instintos, mas, na realidade, nada disso possuímos à nossa disposição. Consideramos o instinto como sendo o conceito sobre a fronteira entre o simático e o mental, e vemos nele o representante psíquico de forças orgânicas. Ademais, aceitamos a distinção popular entre instintos do ego e instinto sexual, pois tal distinção parece concordar com a concepção biológica de que o indivíduo possui dupla orientação, visando, por um lado, à autopreservação e, por outro, à preservação das espécies. Além disso, porém, existem apenas hipóteses, que encampamos e estamos inteiramente prontos a abandonar de novo para que nos ajudassem a encontrar orientação no caso dos processos mais obscuros da mente. O que esperamos das investigações psicanalíticas dos processos patológicos mentais é exatamente que nos levem a algumas conclusões sobre questões vinculadas à teoria dos instintos.

 

Estas investigações, contudo, acham-se no começo, e são realizadas apenas por pesquisadores isolados, de maneira que as esperanças que nelas depositamos devem ainda permanecer irrealizadas. Não podemos mais pôr de lado a possibilidade de que distúrbios da libido reajam sobre as catexias pelo ego. Na verdade, é provável que processos deste tipo constituam a característica istintiva das psicoses. O quanto de tudo isso se pode aplicar à paranóia é impossível dizer presentemente. Existe uma consideração, contudo, que gostaria de acentuar. Não se pode asseverar que um paranóico, mesmo no auge da repressão, retire completamente seu interesse do mundo externo como se julga ocorrer em alguns outros tipos de psicose alucinatória (tais como a amência de Meynert). O paranóico percebe o mundo externo e leva em consideração quaisquer alterações que nele possam acontecer, e o efeito que aquele lhe causa estimula-o a inventar teorias explanatórias (tais como os homens apressadamente improvisados, de Schreber). Parece-me, portanto, muito mais provável que a relação alterada do paranóico com o mundo deva ser explicada inteira ou principalmente pela perda de seu interesse libidinal.

 

Kraepelin e a Escola psiquiátrica alemã.

 

 

É impossível evitar perguntar, em vista da estreita vinculação entre os dois distúrbios, até onde esta concepção de paranóia afetará a nossa concepção de demência precoce. Sou de opinião que Kraepelin estava inteiramente justificado em tomar a medida de separar grande parte do que até então havia sido chamado de paranóia e fundi-la, junto com a catatonia e certas outras formas de doença, numa nova entidade clínica embora demência precoce fosse um nome particularmente infeliz de se escolher para ela.

 

A designação escolhida por Bleuler para o mesmo grupo de formas esquizofrenia acha-se também exposta à objeção, de que o nome parece apropriado contanto que esqueçamos seu significado literal, pois, de outro modo, ele cria prevenção contra o assunto, visto basear-se numa característica da moléstia postulada teoricamente característica, além disso, que não pertence exclusivamente a essa doença, e que, à luz de outras considerações, não pode ser encarada como sendo a essencial. Em geral, contudo, não são de muito grande importância as denominações, que damos aos quadros clínicos. O que me parece mais essencial é que a paranóia deve ser mantida com um tipo clínico independente, por mais freqüentemente que o quadro que ofereça possa ser complicado pela presença de características esquizofrênicas. Do ponto de vista da teoria da libido, embora se assemelhe à demência precoce na medida em que a repressão propriamente dita em ambas as moléstias teria o mesmo aspecto principal desligamento da libido, juntamente com sua regressão para o ego , ela se distinguiria da demência precoce por ter sua fixação disposicional diferentemente localizada e por possuir um mecanismo diverso para o retorno do reprimido (isto é, para a formação de sintomas).

 

Parecer-me-ia plano mais conveniente dar à demência precoce o nome de parafrenia. Este termo não possui conotação especial e serviria para indicar um relacionamento com a paranóia (nome que não pode ser modificado) e, além disso, relembraria a hebefrenia, entidade que hoje se acha fundida com a demência precoce. É verdade que o nome já foi proposto para outros fins, mas isto não precisa nos preocupar, visto que as aplicações alternativas ainda não passaram para uso geral.

Abraham muito convincentemente demonstrou que o afastamento da libido do mundo externo é uma característica particular e claramente marcada da demência precoce. Desta característica inferimos que a repressão é efetuada por meio do desligamento da libido. Aqui, mais uma vez, podemos considerar a fase de alucinações violentas como uma luta entre a repressão e uma tentativa de restabelecimento, por devolver a libido novamente a seus objetos. [Cf. em [1]]. Jung, com extraordinário acume analítico, percebeu que os delírios (delíria) e estereótipos motores que ocorrem nessa perturbação são os resíduos de antigas catexias objetais, que se apegam com grande persistência. Essa tentativa de restabelecimento, que os observadores equivocadamente tomam pela própria doença, não faz uso da projeção, como na paranóia, mas emprega um mecanismo alucinatório (histérico). Este é um dos principais aspectos em que a demência precoce difere da paranóia e esta diferença pode ser geneticamente explicada a partir de outro ângulo. A segunda diferença é demonstrada pelo resultado da doença naqueles casos em que o processo não permaneceu demasiadamente restrito. O prognóstico, em geral, é mais desfavorável do que na paranóia. A vitória fica com a reconstrução. A regressão estende-se não simplesmente ao narcisismo (manifestando-se sob a forma de megalomania), mas a um completo abandono do amor objetal e um retorno ao auto-erotismo infantil. A fixação disposicional deve, portanto, achar-se situada mais atrás do que na paranóia, e residir em algum lugar no início do curso do desenvolvimento entre o auto-erotismo e o amor objetal. Além disso, não é de modo algum provável que impulsos homossexuais, tão freqüentemente talvez invariavelmente encontrados na paranóia, desempenham papel igualmente importante na etiologia dessa enfermidade muito mais abrangente, a demência precoce.

 

Paranóia e  parafrenia

 

Nossas hipóteses quanto às fixações disposicionais na paranóia e na parafrenia tornam fácil perceber que um caso pode começar por sintomas paranóides e, apesar disso, transformar-se em demência precoce, e que fenômenos paranóides e esquizofrênicos podem achar-se combinados em qualquer proporção. E podemos compreender como um quadro clínico como o de Schreber pode ocorrer, e merecer o nome de demência paranóide, a partir do fato de que, na produção de uma fantasia de desejo e de alucinações, ele apresenta traços parafrênicos, enquanto que, na causa ativadora, no emprego do mecanismo da projeção, e no desfecho, exibe um caráter paranóide. Porque é possível que diversas fixações sejam abandonadas no curso do desenvolvimento, e cada uma delas, sucessivamente, pode permitir uma irrupção da libido que havia sido impelida para fora começando talvez com as últimas fixações adquiridas, e passando, à medida que a moléstia se desenvolve, às originais, que se acham mais perto do ponto de partida. Gostaríamos de saber a que condições o resultado relativamente favorável do presente caso se deve; pois não podemos de bom grado atribuir toda a responsabilidade pelo desfecho a algo tão casual quanto a melhora devido à mudança de domicílio, que se estabeleceu após a remoção do paciente da clínica de Flechsig. Mas nosso conhecimento insuficiente das circunstâncias íntimas da história clínica torna impossível fornecer resposta a essa interessante questão. Pode-se suspeitar, contudo, que aquilo que capacitou Schreber a reconciliar-se com sua fantasia homossexual, e possibilitou à sua moléstia terminar em algo que se aproxima de um restabelecimento, pode ter sido o fato de que seu complexo paterno se achava, principalmente, afinado de maneira positiva, e que, na vida real, os anos finais de seu relacionamento com um pai excelente provavelmente não foram tempestuosos.

 

Visto não temer a crítica dos outros nem esquivar-me de criticar a mim próprio, não tenho motivos para evitar a menção de uma semelhança que tem possibilidade de prejudicar nossa teoria da libido na opinião de muitos de meus leitores. Os raios de Deus de Schreber, que se constituíam de uma condensação de raios de Sol, fibras nervosas e espermatozóides [ver em [1]], nada mais são, na realidade, que uma representação concreta e uma projeção para o exterior de catexias libidinais, e emprestam assim a seus delírios uma conformidade marcante com nossa teoria. A crença de que o mundo deveria acabar porque seu ego estava atraindo todos os raios para si, a preocupação ansiosa num período posterior, durante o processo de reconstrução, de que Deus rompesse Sua vinculação de raios com ele esses e muitos outros pormenores da estrutura delirante de Schreber soam quase como percepções endo-psíquicas dos processos cuja existência presumi nestas páginas, como base de nossa explicação da paranóia. Posso, não obstante, invocar um amigo e colega especialista para testemunhar que desenvolvi minha teoria da paranóia antes de me familiarizar com o conteúdo do livro de Schreber. Compete ao futuro decidir se existe mais delírio em minha teoria do que eu gostaria de admitir, ou se há mais verdade no delírio de Schreber do que outras pessoas estão, por enquanto, preparadas para acreditar.

 

Por fim, não posso concluir o presente trabalho que, mais uma vez, constitui apenas fragmento de um todo maior sem prenunciar as duas teses principais no sentido de cujo estabelecimento a teoria da libido das neuroses e das psicoses está avançando: a saber, que as neuroses surgem, principalmente, de um conflito entre o ego e o instinto sexual, e que as formas que elas assumem guardam a marca do curso do desenvolvimento seguido pela libido e pelo ego.